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Inveja. Entre o romance e a filosofia. Do mal secreto à raiva manifesta. O eu destrutivo e a sociedade que desejamos.

Alda de Barros Araújo Cabús*

 

Na década de 90, a Editora Objetiva lançou uma série de enorme sucesso, a Plenos Pecados, convidando sete grandes escritores a escreverem romances sobre cada um dos pecados capitais.  Quem não se divertiu e ficou com água na boca com as excêntricas mesas dos glutões de Luis Fernando Veríssimo ou com as luxuriantes aventuras da personagem sexagenária em A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro?

 

Eram temas recorrentes entre os colegas e amigos em mesas de restaurantes, em festas, em pé com aquele copinho de cerveja à mão, algo excepcional na sociedade brasileira, não muito afeita à leitura. Notícias recentes demonstram que na França a população lê cinco vezes mais que no Brasil, em média 21 livros por ano e aqui, pelas declarações do presidente da Câmara Brasileira do Livro Vitor Tavares, a última pesquisa Retratos da Leitura no país aponta que 44% da população brasileira não lê e 30% nunca comprou um livro. A leitura fica em 10º lugar na preferência de atividades de lazer, atrás de assistir TV, ouvir música, acessar a Internet, entre outros.[1]

 

Certamente, essa é uma das causas da falta de pensamento crítico de grande parte da população brasileira e um governo com pretensão de inverter essa lógica deve adotar medidas cabíveis para modificá-la, garantindo o acesso e estimulando a leitura e diversas outras formas de pensamento artístico e cultural.

 

Um dos livros que mais me impactaram dessa coleção foi O Mal Secreto, de Zuenir Ventura, tratando sobre a inveja. O autor enfatizou a antes quase imperceptível diferença entre inveja e cobiça, colocando-nos diante de um dos sentimentos mais repugnantes em sociedade. Afinal, é mais comum pensar apenas que somos invejados e geralmente negamos a autoria desse pecado.

 

Temos que admitir. Todos nós sentimos inveja em algum ou em muitos momentos. E toda inveja faz mal, lança uma energia negativa, pois ao contrário da cobiça, como ensina Zuenir, o invejoso não quer que o outro tenha.[2] Ou seja, a diferença entre inveja e cobiça é que a segunda é apenas o desejo pelo bem material ou imaterial do outro, enquanto a primeira é a expressão do desejo de destruição do outro. Apesar de a cobiça constar como décimo mandamento, a inveja se mostra em essência mais prejudicial, segundo o autor: “A inveja é destrutiva, a cobiça é competitiva.”[3] Sustenta Zuenir ainda que, na sociedade capitalista, a publicidade incentiva a cobiça.[4]

 

De acordo com os pensamento judaico, a inveja pressupõe o sentimento de raiva, segundo os ensinamentos do Talmude. Chegamos então a outro livro, o do rabino carioca Nilton Bonder, em sua A Cabala da Inveja, obra de alto teor filosófico e existencial, fundada na antiga ética religiosa. A obra faz parte da Trilogia lançada pela Editora Rocco e trata da concepção do ser humano contemporâneo a partir da filosofia e dos ensinamentos judaicos que, de acordo com o provérbio talmúdico Kossó, Kissó e vê-Kossó, “Uma pessoa se faz conhecer por seu copo (comida), seu bolso (dinheiro) e sua ira (inveja).”  A Trilogia A Cabala da Comida, A Cabala do Dinheiro e A Cabala da Inveja traz ensinamentos milenares de maneira fácil e acessível.

 

A Cabala da Inveja, no entanto, é uma leitura mais aprofundada, pois toca em sentimentos essenciais e escondidos do ser humano. Sua leitura desapressada e reflexiva pode proporcionar uma riquíssima experiência consigo próprio. É possível reavaliar comportamentos, reconhecê-los e com a vontade peculiar a quem está interessado em progredir como ser humano, modificar muitas condutas que antes causavam mal a si e ao outro.

 

E sendo a inveja um mal secreto, como defende Zuenir, é preciso que seja descortinada, vista, mexida e, com sorte, varrida, mas não para baixo do tapete. Então podemos falar sobre o assunto e até admiti-la em nossas vidas. Pode ser em segredo ou bem baixinho.

 

O primeiro mito que podemos remover é o de que somos naturalmente bonzinhos. Não importa aqui se adotamos a teoria de Rousseau ou a de Hobbes sobre a natureza do homem. Esse não é o objetivo do texto.  Aliás, se olharmos o caráter egoísta e narcísico do lindo e fofo bebê humano, tenderemos mesmo a concordar com Hobbes. São pequenos déspotas aos quais nos submetemos com todo o amor que há nessa vida, como dizia o velho Cazuza.

 

Bonder ensina que “Afirmar que somos ‘bonzinhos’, culturalmente ‘bonzinhos’, pareceria um truísmo. E, se isto é verdade sob a ótica da lógica, talvez não o seja sob a ótica da nossa percepção rotineira”.  E acrescenta: “É muito comum esquecermos nossa dimensão animal e o fato de que, não fosse pelo desenvolvimento do potencial divino em nós contido, não seríamos capazes de ter o que hoje percebemos como reações íntegras, éticas e decentes.”[5]

 

Arriscamos a dizer que na medida em que nosso psiquismo vai se desenvolvendo, que o bebê humano se dá conta do outro, ou até muito antes,[6] que a criança vai sendo educada e passa a conviver em sociedade, sociedade essa que em si já é traumatizante, com  uma educação desenvolvida por mentores -pais e professores- também sequelados pelos males pessoais e sociais, passa-se a reproduzir  as ações decorrentes da cobiça e a inveja.

 

O olhar para o outro, no entanto, faz parte do próprio desenvolvimento psíquico humano, com a passagem da libido narcísica para a objetal.  Permanecer no espelho narcísico certamente pode acarretar em grave transtorno de personalidade. Aqui temos a ajuda de Freud para explicar. [7]

 

Enfim, voltando ao tema, se a raiva é o motor da inveja, o é também para a maldade humana. Temos a tríade perfeita: raiva-inveja-maldade. Como desfazer esse círculo vicioso? Como o funcionamento pessoal interfere na sociedade?

 

Ruppert ensina  que  “A causa determinante da destrutividade  dos seres humanos é a traumatização de nossa psiquê, que conduz a intermináveis dinâmicas relacionais vítima-agressor.”[8]

 

Portanto, inicialmente é necessário olhar para a questão sem demonizá-la, rompendo-se os tabus do mal secreto e do pecado escondido.

 

As causas que levam o ser humano a atos de inveja, maldade e, em consequência,  à destruição do semelhante,  podem ser fissuras em sua própria psiquê, ou seja, traumas.  Diríamos que uma psique saudável jamais seria capaz de quaisquer atos de violência.

 

Os motivos? São vários e diversos. Sentimentos de frustração, de abandonos, carências materiais e afetivas,  abusos, todas as espécies de violência. Não importa a razão, cada um tem as suas. Reconhecer a inveja, a raiva e a maldade em si  faz parte de um processo de amadurecimento pessoal significativo e garante um olhar mais humanizado no trato com o semelhante.  Essa é uma atitude saudável em busca do aperfeiçoamento pessoal constante e o passo final para a transformação de atitudes.

 

Ainda Ruppert, sobre esse processo de transformação:

 

Se alguém se dá conta disso, se a pessoa afetada se reconhece, então é possível abandonar essa destrutividade, ainda que tenhamos estado nela há muito tempo e que a ela tenhamos nos acostumado. Podemos aprender a voltar a estar conosco mesmos e a nos relacionarmos com os demais com benevolência e simpatia.[9]

 

Se formos pensar no desenvolvimento de nossas atividades profissionais, perceberemos que o desenvolvimento das habilidades humanas tem sido objetivo constante das Escolas Judiciais nas formações iniciais e continuadas dos magistrados, do qual é exemplo o novo programa pedagógico da ENAMAT[10], que preza com ênfase  por conteúdos que envolvem desenvolvimento pessoal.

 

Em tempos de substituição do homem pela máquina, em tempos em que, parodiando Hobbes, o homem ainda se comporta como lobo do próprio homem, muitas vezes caçando seus próprios semelhantes e formando uma espécie de alcateia suicida, restará aos profissionais o trato com o que há de humano em cada um. E esse humano do profissional deve estar devidamente tratado.

 

A técnica será apenas a técnica, lembrando Fernando Pessoa.[11] E para que, sem a utilidade da técnica, não nos percamos no vazio, fugindo da realidade que bate à porta, é preciso investir no humano, na solução de nossas dificuldades, traumas, carências, vazios existenciais, males, raivas, invejas.  Com isso poderemos nos adaptar a uma sociedade em transformação e que ainda necessita de muito crescimento e aperfeiçoamento.

 

Assim será possível começar a construir em si mesmo a sociedade que se deseja[12], só que baseada em cooperação, amor e solidariedade. Antes de tudo, no entanto, é necessário ter consciência.

 

Que as novas tecnologias e a Inteligência Artificial trabalhem em nosso favor sem maiores exclusões.

[1] https://www.rfi.fr/br/cultura/20190313-franceses-leem-21-livros-por-ano-cinco-vezes-mais-que-brasileiros

[2] VENTURA, Zuenir. O Mal Secreto- Inveja. Objetiva, 1998, pág. 11.

[3] Idem, pág. 25.

[4] Idem.

[5] BONDER, Nilton. A Cabala da Inveja. Rocco, 2010, p.128.

[6] Franz Ruppert, doutor em psicologia na Alemanha e pesquisador, elaborou o método da Teoria da Identidade Orientada para o Trauma – IoPT, e considera a existência de fissuras na psiquê humana ainda no ventre materno. Esse assunto merece uma análise mais específica e dedicada.

[7] GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana. Vol. 3, Zahar, 2018, pág.64.

[8] RUPPERT, Franz. Quien soy yo en la sociedad traumatizada. Kindle, Pos. 275 (Tradução livre).

[9] Idem.

[10] Escola Nacional da Magistratura do Trabalho- TST, Brasília

[11] Fernando Pessoa, por Álvaro de Campos. Lisbon Revisited. 1923.“ Sou um técnico, mas tenho técnica somente dentro da técnica./ Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo./Com todo o direito a sê-lo, ouviram?”

[12] “Cada um é em si mesmo a sociedade  que deseja”. Quien soy yo… Pos. 2982. Tradução livre.

 

* Juíza do Trabalho Titular da 9ª Vara do Trabalho de Maceió

Diretora Cultural da Amatra 19

Coordenadora Substituta do CEJUSC JT 19

Graduanda em Psicologia