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Escravidão moderna: tendência de aumento no pós-pandemia?

Carolina Bertrand Rodrigues Oliveira*

A partir de 2009, após a chacina que vitimou auditores fiscais e um motorista na zona rural de Unaí-MG em 2004, instituiu-se no Brasil o dia 28 de janeiro como o dia designado para o combate contra a exploração da mão de obra trabalhadora, submetida ao trabalho  degradante, análogo ao de escravo.

Propomo-nos a abordar um pouco sobre essa mazela tão antiga quanto nossa hisória, mas que ainda desafia todos quantos se dedicam a ações efetivas de prevenção e repressão ao problema. Mesmo em pleno século XXI, nossa sociedade ainda  não conseguiu abolir de vez a cadeia sistêmica que continua reproduzindo o trabalho escravo. Em um cenário que se delineia a situação de miserabilidade das suas vitimas, a ganância e impunidade dos empregadores, além da fragilização dos sistemas de invetigação e fiscalização, não há nada do que se orgulhar.

Nosso Código Penal conceitua o trabalho análogo à escravidão, no seu artigo 149, como aquele que tende a: “reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.”

Conforme dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) [1]órgão sempre em busca de internacionalizar medidas que se apliquem aos seus quase 200 países-membros, o problema da escravidão moderna atinge no mundo todo mulheres e meninas na proporção de 55%, além de homens e meninos no percentual de 45%, sendo que um quarto entre todos as vítimas é composto apenas por crianças. O grupo de imigrantes também recebe especial destaque nos dados estatísticos, sendo que a exploração sexual forçada afeta 22% de todas as vítimas, enquanto a exploração laboral atinge 68%.

Em absoluto desrespeito ao princípio da dignidade humana e aos demais corolários, que resguardam os direitos fundamentais, os infratores costumam se sentir como se isentos estivessem do alcance da lei, porquanto persistem promovendo a exploração de vulneráveis tanto em zonas urbanas, como rurais. Somente em 2020, ano de pandemia e dificuldades extremas, a Inspeção do Trabalho[2] identificou 134 trabalhadores em condições análogas à escravidão na zona rural e 106 na zona urbana, considerando-se apenas as ações empreendidas de janeiro a junho do mesmo ano.

Segundo dados do site do Ministério da Economia, as atividades de apoio à agricultura concentraram o maior número de pessoas submetidas ao trabalho forçado rural e em condições degradantes, sendo localizados apenas em Minas Gerais, por exemplo, 116 casos.  Em se tratando de zona urbana, somente no setor de comércio varejista de uso doméstico, para nosso espanto, foram identificados 78 trabalhadores apenas no Distrito Federal, capital da República. 

Em 2019, antes da pandemia, um total de 51,742 milhões de brasileiros, ou 24,7% da população, já estavam abaixo da linha de pobreza, sobrevivendo no máximo, com uma renda de R$ 436 por pessoa do domicílio. Dentro desse grupo, os considerados extremamente pobres – com renda mensal de até R$ 151 por pessoa do domicílio – eram 13,689 milhões em 2019, 6,5% da população, conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) [3],divulgados em novembro de 2020.

Dentro dessa linha de raciocínio, pode-se antevê que no curto período do pós-pandemia não haverá o sonhado desenvolvimento econômico, capaz de gerar uma melhor distribuição da riqueza e, por isso, aposta-se numa forte tendência de trabalhos degradantes continuarem sendo a única opção para boa parte da nossa população mais indefesa, que será submetida ainda mais à precarização de direitos.

No quadro nacional, apesar de todos os avanços legislativos alcançados ao longo das últimas décadas, como a criminalização de pessoas físicas e jurídicas envolvidas na escravização moderna, além da perda do direito a financiamentos bancários, por exemplo, as expectativas para 2021 não são nada animadoras, pois as verbas destinadas às fiscalizações trabalhistas no combate a essa chaga social são as menores desde  2013[4], o que nos autoriza prever que o enfraquecimento de ações de combate promoverá um afrouxamento para que novas infrações se perpetuem e assim, cresça o número de sujeitos submetidos à modalidade do trabalho tipificado no art. 149 do CP.   

Não à toa, estimativas da OIT informam que a cada ano, as formas modernas de escravidão promovem cerca de 150 milhões de dólares para a economia privada ao redor do mundo[5], o que já reforça o quão atrativo se torna o segmento.

Pessoas pobres, com baixa ou nenhuma escolaridade; negras ou pardas; as que apresentam algum tipo de deficiência; os imigrantes, em geral têm maior dificuldade de ter acesso a um trabalho decente, sendo alvo de exclusões, conforme apontam variadas publicações. Com razão, a Agenda 2030 da ONU além de buscar reduzir desigualdades, elegeu o trabalho decente e o crescimento econômico como um tópico decisivo a ser priorizado. Afinal, não há como se pensar em crescimento sustentável de uma nação, se seus índices de desenvolvimento humano apontam para a posição contrária.

Em leitura rápida dos arts. 1º a 4º da nossa Constituição Federal, é com ênfase que se prioriza a cidadania, a dignidade da pessoa humana,  os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, sem o que não há como se alcançar o fim precípuo de se erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais dentro do nosso país.

Está mais do que repisado, que se deve buscar a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, encontrando-se a defesa dos direitos humanos, da paz, da solução pacífica dos conflitos e repúdio ao racismo, listados como princípios soberanos no texto constitucional.  

Mesmo que nossa lei régia, em vigor desde 1988, seja reconhecida como a Constituição Cidadã, pelo primor com que trata as garantias individuais, muito ainda se tem a avançar quanto à prática dos princípios aí insculpidos, chamando-se a atenção para o da liberdade, totalmente ignorado por muitos da nossa sociedade.    

Nossos mecanismos institucionais devem todos se voltar para manter assegurado o direito à autonomia, que é a base da dignidade humana. A liberdade do homem se trata de uma lei universal, preceito que precisa ser constante e interminavelmente  reavivado por nossas políticas públicas e demais ações governamentais. Todas estão incumbidas da missão primeira e última de promover a dignidade, usando o devido combate e acionando os meios repressivos necessários à qualquer ameaça de desumanização, inclusive aquelas camufladas pela retórica da  boa intenção, que ganham visibilidade midiática, na tentativa de ocultarem a maldade embutida no quotidiano.     

Merece reflexão o fato de cada vez menos pessoas estarem conseguindo ter acesso à igualdade de oportunidades ao que lhes é básico, como alimentação, saúde, educação, trabalho, habitação, pois o universo de cerca de 14 milhões de desempregados [6] já induz à precariedade de direitos. Kant já destacava que os seres racionais, por serem insubstituíveis e únicos, estavam dotados de dignidade em seu valor intrínseco, e por isso deveriam ser chamados de pessoas, porém os números demonstram que muitas têm sido tratadas pior do que animais.                                      

Aproveitar-se de pessoas mais desfavorecidas, como se objeto fossem, é uma variável na qual se insere a escravidão moderna e vários organismos internacionais têm colaborado com a divulgação de estatísticas por demais impactantes.

O relatório Índice Global de Escravidão 2018[7], publicado pela fundação australiana Walk Free, familiarizada com pesquisas em cerca de 160 países sobre o tema, relata que no Brasil em 2016 foram identificadas quase 370 mil pessoas desenvolvendo atividades análogas à escravidão moderna, o corresponde a uma taxa de 1,8 pessoas para cada mil habitantes, perdendo em números absolutos, em toda a região das Américas, apenas para os EUA, que registraram 403 mil pessoas (1,3 para mil).

A meta 8.7 do ODS 8 da ONU está aí, como forte aliado,  para que sejam pensadas e implementadas medidas eficazes, capazes de acabarem com o trabalho forçado, escravidão moderna e tráfico humano, bem como o trabalho infantil em todas as suas formas.        

No Relatório Mundial de Salários 2020-2021 publicado pela OIT[8], em sua parte III há a advertência de que para a redução da desigualdade vertical e horizontal entre vários trabalhadores ser de fato eficiente, a adoção de uma política justa de remuneração mínima é indispensável. Seriam necessárias políticas públicas que buscassem a efetivação de medidas que, nas palavras da Declaração da Filadélfia, pudessem garantir “uma partilha justa dos frutos do progresso para todos” (OIT 1944).

É no mínimo desafiador para a sociedade em geral e para os órgãos públicos envolvidos, encontrarem-se meios adequados para se romper por completo a interseção oculta entre fornecedores e consumidores da cadeia produtiva em que não há garantia de direitos trabalhistas. A menos que sejam resgatadas, é que as vítimas vêm a receber quitação de seus direitos. Lamenta-se o fato de tantos brasileiros e também imigrantes perderem sua liberdade de ir e vir, ao se submeterem a serviços degradantes, por vezes até no âmbito doméstico, por conta de coação ou falsas promessas dos que lhe prometem uma renda para seu sustento.

Que se possa reinvestir cada vez mais em ações preventivas e repressivas, além de ações formativas e educativas, para que em um tempo não muito distante se pare de presenciar a coisificação de tantos homens, mulheres, crianças e da população de excluídos.

Não há dúvidas de que na base da distribuição de renda estão as pessoas desempregadas, subempregadas, as que trabalham na economia informal ou estão fora da força de trabalho, aumentando o surgimento de vários grupos de pessoas desfavorecidas e cada vez mais vulneráveis.

Quando se entende que o trabalho dignifica o homem, é necessário que também se compreenda que o trabalho forçado não apenas o prejudica e maltrata,  mas também marca o retrocesso de toda uma sociedade, que envergonha seus filhos, por sua incapacidade de fomentar condições de sobrevivência justas e favoráveis, capazes de promoverem um desenvolvimento econômico sem tantas chagas marcadas pela dor e o abandono dos que mais carecem de oportunidades.

Enquanto medidas mais enérgicas a serem abraçadas por toda a sociedade e seus representantes legais e institucionais não se multiplicarem de forma proativa, tudo indica que nos anos seguintes à pandemia em curso, haver-se-á de continuar com a perpetuação de condições sub-humanas de trabalho em centros urbanos e rurais, que não receberão a devida fiscalização e permanecerão ocultadas dos dados estatísticos oficias.

Porém, ante todas essas considerações, espera-se que não tarde uma resolução para esse grave problema social, recorrente no mundo e em nosso país. O caminho já está indicado pela ciência, que são a valorização de políticas públicas adequadas, com o investimento em educação de qualidade, fiscalização bem equipada, promoção do pleno emprego e correção de rumos de práticas que degradam a pessoa humana, despersonalizando-a e transformando em objeto.

 

* Juíza do Trabalho, Gestora Regional do Programa Trabalho Seguro no TRT da 19ª Região.Presidente da Amatra 19. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Graduada em Psicologia.

 

REFERÊNCIAS

[1] https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/WCMS_393068/lang–pt/index.htm

2 https://sit.trabalho.gov.br/radar/

[6]https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/12/23/desemprego-diante-da-pandemia-atinge-142percent-em-novembro-e-bate-novo-recorde.ghtml