A verdade sobre a Justiça do Trabalho
Germano Siqueira, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)
Há alguns anos – e muito mais intensamente a contar de 2015– dissemina-se um enredo conservador que tem como finalidade desacreditar a Justiça do Trabalho brasileira e os magistrados que a integram. Nas últimas semanas, ora pelo deboche, ora por graves acusações de parcialidade e favorecimento, culminou-se por falar em “desbalanceamento” e desequilíbrio na aplicação da lei.
Trata-se de um movimento imprudente e ofensivo, que objetiva também macular e regredir os direitos sociais minimamente estabelecidos na Constituição Federal de 1988, como se fosse esse o real sentimento da sociedade, embora se perceba, facilmente, que um processo de desmonte de direitos não passa pelo crivo da população.
Contrariamente a essas vozes, tem sido a atuação equilibrada de 3.600 juízes em todo o país, que na verdade têm dado as respostas adequadas, pelos canais constitucionalmente definidos, para tratar os conflitos resultantes da relação capital e trabalho, por meio das 1.570 varas trabalhistas instaladas em todo o país, dos 24 Tribunais Regionais e do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Nesse contexto, qualificar a atuação desses magistrados como parcial e desequilibrada em favor de empregados, tal como vem sugerindo, reiteradamente, o presidente do TST, ministro Ives Gandra Filho, ecoando vozes de segmentos do empresariado, é, para dizer o mínimo, um imenso equívoco, uma injustiça gravíssima para com a Magistratura, um ato de censura coletiva inaceitável e, por fim, uma incontestável falácia. São declarações que também denotam desconhecimento da própria realidade que o cerca.
Aliás, nenhum presidente, corregedor ou outro magistrado, ocupante de cargo em qualquer Tribunal ou na primeira instância, salvo indícios ou comprovação do afirmado – o que não é o caso -, tem o direito de, em semelhante circunstância, lançar dúvidas sobre a conduta ética e sobre a honorabilidade dos juízes do Trabalho, ainda mais por apenas ter ouvido “reclamação no setor patronal”, a ponto de presumir que “alguma coisa está acontecendo”. Agindo assim, estaríamos admitindo e inaugurando tempos de imprudência institucional como modelo a seguir, pelo desrespeito aos magistrados como possibilidade aberta, na medida em que se admita o livre “direito” de instaurar suspeições genéricas de honorabilidade (ou contra qualquer cidadão), que resultaria em introduzir uma espécie de “Macarthismo” judicial, comprometendo a própria independência da Magistratura, que tem como garantia (garantia da sociedade) o direito ao livre exercício de pronunciar o Direito sem constrangimentos morais internos ou externos.
Os tais supostos “desbalanceamentos” e “desequilíbrios” jurisdicionais não apenas são, pontual e legalmente, insuscetíveis dessa modalidade de crítica depreciativa (art.36, III, Lei Orgânica da Magistratura – Loman), como as bases fáticas desses questionamentos não encontram qualquer apoio na realidade sendo, portanto, inverídicas.
Nesse sentido há de se dizer que em 2015 os cerca de R$ 18 bilhões que foram pagos aos reclamantes, apenas para citar exemplo daquele ano, não corresponde ao total da demanda (os pedidos, em Reais) anualmente recebida pela Justiça do Trabalho que chega, anote-se bem, à casa dos 70 bilhões naquele mesmo ano. E são parâmetros que se repetem em cada nova temporada.
Vale lembrar também que, das cerca de 2,6 milhões de novas ações, aproximadamente 25% são do chamado rito sumaríssimo, ou seja, causas de até 40 salários mínimos e que, por lei (Lei 9.957/2000), têm um rito processual mais célere. Tal procedimento, contudo, não se aplica à Administração Pública Direta, Autárquica e Fundacional, nem aos valores superiores a 40 salários mínimos que, por conseguinte, aproximam-se dos 75% das ações (1,9 milhões), e tramitam na forma do rito ordinário. Há, como visto, considerável distância entre o pretendido e o deferido.
Pode-se ver, dessa forma, que ao contrário do que se falou, o que se verifica, em números, é que os juízes, no ofício de julgar, examinam as ações com critério, sem fugir dos autos para dar ouvidos a “queixas”, observando unicamente o devido processo legal, inclusive para fazer valer regra da independência que lhes é tão cara. Em um cenário como esse não há como se falar em paternalismo com os empregados, nem em defesa das empresas. Acolhe-se o que merece ser provido. Alegações que vão de encontro a essa realidade são fruto de interesses contrariados.
Há também que se lançar um olhar sobre a característica ética das relações de trabalho no Brasil. O fato é que existe uma busca expressiva pelo Judiciário, parecendo haver motivos para que isso ocorra, obviamente. Nesse sentido, vale apontar que, no topo das matérias mais demandadas pelo Poder Judiciário como um todo, conforme dados recentes divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pontuam pleitos relativos a rescisões de contrato, horas extras e, mais detalhadamente, o valor incontroverso das parcelas rescisórias, FGTS mais 40%, adicional de horas extras, matérias essas que deveriam ser resolvidas pelas partes no curso do contrato. Se muitas dessas demandas chegam aos juízes, falha uma das partes na relação contratual, e não o Judiciário.
Importante levar em conta que a realidade tende a se agravar ainda mais caso a ideia da terceirização irrestrita e sem balizas éticas e constitucionais venha a se tornar realidade, inclusive com o tormentoso risco de comprometer os princípios constitucionais da moralidade e do concurso público, já que até mesmo instituições públicas poderiam terceirizar suas atividades essenciais. Isso sem falar da hipótese da prevalência do negociado sobre o legislado. Essas ideias, além de degradar as condições de trabalho, não contribuem para diminuir ações trabalhistas. Ao contrário.
Um país incapaz de controlar a prática do trabalho infantil que atinge cerca de 3,4 milhões de crianças, que já libertou cerca de 50 mil trabalhadores da vergonhosa condição de escravos “modernos” em pleno século 21, para não falar dos seus 13 milhões de adultos não alfabetizados, não pode se dar ao luxo de flexibilizar políticas e direitos que tenham como opções o custo de regredir garantias sociais.
Colocar-se contra a Justiça do Trabalho e contra os direitos trabalhistas em um país tão injusto e desigual é o mesmo que apontar as armas do discurso e do poder político contra o povo, que ainda não se deu conta do valor que tem o seu próprio voto; população essa que pode ser atingida, duramente, por gerações seguidas.
Não há paternalismo nem condescendência, reafirme-se. Falas nesse sentido apenas reproduzem discursos inconsistentes e desrespeitosos. O respeito à Magistratura do Trabalho é o mínimo que se pode cobrar e será exigido.