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Nota de pesar: Eurides Cavalcante Barros; leia a crônica

A Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 19ª Região (Amatra19) manifesta profundo pesar pelo falecimento da senhora Eurides Cavalcante Barros, neste sábado (29), vítima de complicações pela Covid-19.

Eurides Cavalcante Barros tinha 97 anos, era avó da juíza do Trabalho Alda Barros Araújo Cabús, associada da Amatra 19.

A Amatra 19 manifesta condolências aos familiares e amigos neste momento de irreparável perda, para todos os que desfrutavam de sua convivência.

Para reverenciar sua avó, a juíza Alda Barros escreveu uma crônica:

Meu pé-de-moleque era de milho

Pé-de-moleque é um doce típico do nordeste. Tem várias versões e receitas, algumas mais doces, como a feita com amendoim e açúcar, e outras assadas na folha da bananeira no tabuleiro de ferro, à chama do fogão à lenha, como minha avó fazia até pouco tempo atrás.

Era um código de muito afeto para mim. Eu só gostava daquele à base de milho, que ela pessoalmente ralava, ao lado do moinho de café na despensa da velha casa no sítio.

Sim, era uma casa no sítio na década de 70. Não tinha água encanada e muito menos luz elétrica. A água era buscada nos potes de barro no rio e eu até tinha o meu, bem pequeno, de criança. Descansado sobre a rodilha (“rodia”), sobia a várzea até chegar à casa grande.

E com isso desde cedo aprendi a colocar a “rodia”, só que às vezes o tamanho do pote era maior do que eu podia carregar.

A casa não era tão grande, mas era suficiente para dar ao meu avô o título de Coronel. Ele não era coronel por ser da polícia ou do exército, mas sim porque era generoso, amado e admirado pelo povo. Com suas vaquinhas de leite e sua plantação de milho e feijão, nunca deixou de dar um prato de comida a quem precisasse, de ajudar a um compadre ou até mesmo a um desconhecido e de fazer trocas inimagináveis a um homem que vivia do cultivo da terra.

Minha avó era quem cozinhava para alimentar o povo. Gente simples, trabalhadora, só que muitas vezes por passar dificuldades com a chuva que não vinha, ficava desprevenida.

Essa desprevenção nunca houve lá na casa dos meus avós, que sabiam fazer render o tanto que tinham em proveito de quem necessitasse. Acredito que solidariedade com o menos favorecido vem de lá.

Ela cozinhava e ainda ensinava os meninos da roça a ler e escrever, bem como a fazer as contas.

Bisneta de índia da tribo fulni-ô, sua mãe, minha bisa, era irmã gêmea de minha avó paterna. A afirmação minha avó era irmã gêmea de minha bisavó sempre leva à reflexão todos que ouvem pela primeira vez a sentença. Mas como sua avó é irmã gêmea da sua bisavó?

E eu simplesmente sorrio e aguardo dois minutos antes de dar a explicação.

O domínio de meu avô, o “Coroné” Paulo, era muito diferente daqueles outros “padrinhos” do interior. Era o da plenitude de amor, um olhar único para o ser humano, e me acompanha até hoje, 40 anos após sua partida.

Era para falar da minha avó que nos deixou ontem. Não é de estranhar que meu avô venha ao pensamento com tanta força, pois era dele, Paulo, de quem ela mais falava e com quem sempre desejou se reencontrar.

Essa semana ela disse que estava pronta para encontrar seu marido, que sua hora tinha chegado. E assim foi, de maneira rápida. Horas antes ainda era a altiva Eurides, que mandava e desmandava em sua vida. Quis se levantar da cama, permiti. Desejou caminhar, conduzi. Eram seus últimos passos e tive a honra de ajudá-los. Segurava firme em meu corpo para exercer suas derradeiras manifestações de dignidade.

Ela, que me pegou pela mão tantas vezes para me mostrar o mundo, a natureza, que fazia meus pés-de-moleque de milho preferidos, sustentava-se firme em meu corpo como anteparo para a sua existência que culminava. Suas mãos, que comigo tratavam os peixinhos pescados no rio ao som das risadas compassivas quando eu pedia para tirar a “cara” do peixe, aos 4 ou 5 anos, apertava ainda firme meus braços e eu podia sentir a força daquela mulher de 97 anos.

Corpo frágil, mente que nos últimos momentos não me reconhecia. Só que eu sabia quem era ela.
Ela, que na infância, só me dava faca cega e eu reclamava. Faca cega para tratar o peixe, em cima de um banco a seu lado na cozinha. Faca cega para cortar a palma forrageira com meu avô e alimentar nossas vaquinhas.

Talvez por isso tenha virado uma grande reclamona, protestando desde cedo pelos meus direitos de ter uma faca que cortasse, com a qual pudesse fazer meu trabalho direito.

E seu legado foi esse mesmo, o de muito trabalho. Acordava às 4h da madrugada para ralar o milho pessoalmente, com o qual fazia o cuscuz que comíamos com o leite que meu avô ainda tirava nas épocas de saúde. Ela batia o soro do leite com o garfo até se transformar em manteiga e também fazia muitos queijos. Achava incrível como suas mãos rápidas e mágicas faziam surgir um pote de manteiga brilhante deliciosa.

E aquele mesmo milho, cultivado e guardado do oitão da casa, que fazia meus pés-de-moleque preferidos com as mãos que só eu sei o que representam em minha vida, ainda alimenta a minha alma.