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Reforma Trabalhista: modernização ou retrocesso? Cronos dirá!

Na mitologia grega, Cronos, deus do tempo, engole os filhos que teve com Rhea com receio de ser destronado no futuro, numa ilustração de que o tempo a nada e a ninguém perdoa e tudo revela. Nada pode a ele resistir! Essa é a essência desse mito.
Pois bem. Talvez seja cedo para se ter uma visão definitiva dos efeitos da reforma trabalhista nas vidas dos trabalhadores e das empresas. Um posicionamento nesses termos, neste momento, até pode ser precipitado.
Mas me parece inevitável uma perspectiva pessimista. Já li e reli o texto da reforma e todas as suas proposições e não consigo ser otimista quanto ao discurso do governo de que as novas regras vão, de um lado, reduzir a litigiosidade entre patrões e empregados e, de outro lado, assegurar a criação de novos postos de trabalho, contribuindo para a superação da crise econômica.
Não consigo imaginar como a implantação do trabalho intermitente (sem previsibilidade, para o trabalhador, da carga horária e do ganho financeiro), a relativização das regras legais (o ‘negociado’ prevalecendo sobre a lei), a taxação das indenizações por danos morais (baseada no salário do empregado), a proibição de que juízes examinem a essência dos contratos para coibir fraudes, a limitação da análise dos juízes ao conteúdo de convenções e acordos coletivos, a autorização para despedida em massa (portanto, coletiva) sem necessidade de negociação coletiva (bastando as negociações individuais com cada trabalhador despedido), a transformação de diversas verbas salariais em verbas não salariais (reduzindo-se, por consequência, outros direitos que incidem sobre a massa salarial), a limitação, de um modo geral, da atuação institucional da Justiça do Trabalho, que deverá doravante ser pautada pelo (inédito!) princípio da ‘intervenção mínima’ (que não se aplica a qualquer outro ramo do Poder Judiciário), o incentivo expresso e legalmente legitimado para a ‘transmudação’ do empregado em trabalhador autônomo (portanto, sem qualquer direito ou garantia de natureza trabalhista), a possibilidade de empregada gestante ou lactante trabalhar em local insalubre (é isso mesmo!), enfim, como essas modificações, entre tantas outras na mesma direção e com o mesmo propósito de satisfazer os ‘interesses do mercado’, poderão alavancar a economia do país e gerar novos empregos.
A proposição dessa reforma, num olhar em perspectiva sobre os resultados ‘prometidos’ e os meios utilizados, representa um paradoxo de proporções surreais!
Para além disso, há que se considerar ainda os diversos dispositivos que ferem frontalmente normas consagradas na Constituição Federal. Em muitos aspectos essa reforma apresenta-se inconstitucional, sob uma análise estritamente jurídica, embora isso não signifique que as inconstitucionalidades serão efetivamente reconhecidas pela Corte Suprema do país, por motivos que se tornam óbvios a partir das circunstâncias recentes envolvendo a atuação daquele tribunal, seja na tendência revelada na apreciação de matérias afetas à reforma, de um modo geral, seja na postura e nos pronunciamentos adotados publicamente por alguns de seus integrantes, a revelar um constrangedor e, a meu ver, inadequado alinhamento com os posicionamentos de ordem político-ideológica defendidos pelo atual governo.
O que enxergo, de momento, é que essa reforma promove, invariavelmente, redução de direitos trabalhistas, precarização das relações de trabalho e um consistente retrocesso social. Prejudica a sociedade como um todo. A médio e longo prazo, pode-se projetar uma redução de consumo pela perda da capacidade de compra do cidadão, que é trabalhador mas também é consumidor, resultado da redução da massa salarial numa escala crescente. Perdem os trabalhadores. Perdem os empresários de pequenas e médias empresas. Perde o Estado (com redução de arrecadação). Perde, portanto, a sociedade. Ganha o grande capital, que, convenhamos, não depende do mercado brasileiro para sobreviver.
Defender que a reforma trabalhista aprovada moderniza a legislação trabalhista para permitir a criação de novos empregos e alavancar a economia do país é um acinte, para dizer o mínimo. Só pode ser fruto da ausência de conhecimento ou excesso de má-fé. Qualquer que seja o motivo, no entanto, não faz a menor diferença. Os resultados virão para todos. Ou quase todos.
Aliás, chamar essas alterações legislativas de ‘reforma’ para ‘modernizar’ as relações de trabalho representa mais do que um mero eufemismo. Revela a necessidade de ocultar o verdadeiro propósito de seus mentores a patrocinadores. Mas isso não importa. O nome que se dê a essa investida contra os direitos sociais é o menos importante nessa equação. Afinal, já dizia o poeta na letra de um hit pop dos anos 80, “as coisas mudam de nome, mas continuam sendo o que sempre serão!”
Mas, então, nada há de positivo nessa nova legislação? Há, sim. Claro! Algumas poucas normas periféricas, cujo teor tem um peso modesto, quase insignificante, eu diria, na comparação com todo o restante. Mas não se mede a tormenta pelo estrago que ela deixou de causar.
O mais grave, contudo, não está no conteúdo das novas regras aprovadas. Mas na tendência que aponta para um novo paradigma de sociedade. E que novo modelo estamos construindo? Quais são seus valores? O que esperar daqui pra frente?
Temos um parlamento, em regra e com honrosas exceções, completamente despido de qualquer pudor republicano. Deputados e senadores que alteram as leis do país para adequá-las aos seus interesses pessoais e empresariais com uma naturalidade que extrapola as raias do cinismo aceitável (se é que isso existe)! Para além dessa ruptura com fundamentos históricos que justificam a atuação da Justiça do Trabalho, está aí, a não me deixar mentir, a proposta de anistia a dívidas tributárias (e previdenciárias), em cujo rol de grandes devedores encontram-se diversos deputados e senadores, inclusive o relator do projeto de lei na Câmara. Estima-se uma perda para o país de algo em torno de R$ 250 bilhões. Além disso, a consolidação da cultura de que pagar impostos não vale à pena para quem está no topo da pirâmide, embora, paradoxalmente, sejam esses os que detêm maior capacidade para fazê-lo. Nosso parlamento legisla para si… e para o mercado!
Teria sido, a aprovação desse projeto de lei que anistia os grandes e privilegiados devedores do Estado, uma das contrapartidas para a aprovação da reforma trabalhista a pedido do governo? Não me surpreenderia!
Aliás, isso me traz à lembrança a sátira social de George Orwell na sua festejada obra Revolução dos Bichos, de 1945, que embora trate de um outro contexto me parece conter aspecto que guarda certa similitude com o que estamos vivenciando. A narrativa conta sobre animais de uma fazenda que se rebelaram contra os humanos e instituíram seu próprio governo com sete mandamentos básicos, entre eles o número 7: “todos os animais são iguais”. Corrompido pelo poder e pelas regalias de que passou a dispor, o líder da revolução (não por acaso, um porco!) logo tratou de fazer um acréscimo ao mandamento número 7, que passou a prever: “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Talvez tenha sido essa ideia a inspirar essas propostas que tramitam em nosso parlamento. Ao fim e ao cabo, aos “mais iguais” tudo! Ao restante…

E assim, caminhamos rumo à construção de uma realidade social na qual, definitivamente, os “valores de mercado” prevalecerão sobre os “valores humanos”! Tudo o mais é só o resto!
Com toda a sinceridade e força de que sou capaz, espero estar completamente equivocado nessa avaliação. Meu grande temor… é que não esteja! Cronos dirá!

Sergio Queiroz
Juiz do Trabalho
Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 19ª Região – Amatra 19.